Revisão histórica do planejamento urbano de Curitiba é tema de dissertação

Autor: Carolina Jardine, Assessoria de Comunicação da FNA

O conceito de “cidade modelo” e as contradições socioambientais como ocupações irregulares e desigualdade no atendimento ao transporte público são tema da pesquisa A metrópole e o planejamento urbano: revisitando o mito da Curitiba-modelo, de autoria da arquiteta e urbanista Laisa Eleonora Stroher, secretária de Mobilização e Inserção Profissional da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).

Professora de arquitetura e urbanismo FIAM-FAAM de São Paulo, Laisa é doutoranda no programa de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC). Por meio de uma revisão histórica e crítica da trajetória de planejamento urbano na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), a partir da década de 1960, o objetivo foi entender as razões da cidade sustentar o título de “cidade-modelo”, apesar das contradições.

“O tema do trabalho é importante na desconstrução das unanimidades urbanísticas ditadas por uma mesma linha de pensamento há muito tempo”, avalia o presidente da FNA, Jeferson Salazar, destaca a importância de dar lugar ao novo. A dissertação de mestrado foi defendida em 2014, na linha de planejamento urbano e regional, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O trabalho estádisponível para pesquisadores e estudiosos dos temas urbanos no site da FAU/USP.

Confira, abaixo, entrevista com Laisa Eleonora Stroher.

O que motivou a escolha do tema “A metrópole e o planejamento urbano: revisitando o mito da Curitiba-modelo?

A motivação foi a constatação de que, em que pese o fato de Curitiba ser conhecida nacional e internacionalmente como uma “cidade modelo”, a metrópole apresenta diversas contradições socioambientais (como ocupações irregulares, desigualdade no atendimento ao transporte público) como boa parte das grandes cidades de países periféricos. Portanto, tive o intuito de entender mais profundamente as razões da cidade sustentar tal título apesar das evidentes contradições, para isso recorri a uma revisão histórica baseada na literatura do urbanismo crítico.

O trabalho abrange um período de 55 anos, desde 1960 até hoje. Neste período, quais foram as principais transformações no planejamento urbano da Região Metropolitana de Curitiba (RMC)?

Pude constatar três fases, a primeira, entre os anos 1960 e 1970, é marcada pela criação dos órgãos municipal e metropolitano de planejamento, o IPPUC e a COMEC – e pela ação estatal através de grandes intervenções – como os eixos estruturais e a CIC (Cidade Industrial de Curitiba). Nesse período foi realizado o Plano Preliminar de Urbanismo (PPU) de Curitiba (de 1965), coordenado por Jorge Wilheim, que previa o crescimento prioritariamente linear da cidade, ao longo dos eixos estruturais, localizados no vetor nordeste-sudoeste. Em 1978 foi aprovado o I Plano Desenvolvimento Integrado (I PDI) da RMC, que propôs a expansão urbana prioritariamente a oeste. Observa-se, no entanto, que o crescimento urbano ocorreu de forma multidirecional, especialmente para o leste sobre as áreas de manancial, onde a terra é mais barata, através de ocupações predominantemente irregulares. Ou seja, um processo de urbanização semelhante nesse sentido ao das demais metrópoles.

O segundo período, entre os anos 1980 até meados dos anos 2000, representou uma fase de crise econômica nacional, que refletiu na retração dos investimentos em planejamento urbano. Ocorre a partir daí uma transição da forma de intervenção estatal em Curitiba: de grandes projetos urbanos para projetos pontuais de forte apelo visual (comumente chamados de “projetos inovadores”). Esta mudança foi acompanhada de estratégias de city marketing, que ajudaram a manter vivo o discurso da “cidade modelo”. Percebe-se ainda uma mudança nos mecanismos de financiamento da política urbana, através de instrumentos urbanísticos associados às parcerias público-privadas (como o programa habitacional intitulado Parceria com a Iniciativa Privada e o instrumento do solo criado). A despeito do discurso e das promessas dos novos instrumentos, este foi o período de maior expansão das ocupações irregulares na RMC, especialmente sobre áreas ambientalmente frágeis.

Na fase mais recente – a partir de meados dos anos 2000 – observa-se uma retomada da elaboração dos planos diretores e das grandes intervenções territoriais. Em 2004 é revisado o plano diretor de Curitiba, e, em 2006, aprova-se o II PDI da RMC. Uma proposta central ao novo plano municipal foi a criação de um novo eixo estrutural, ao longo da BR-116, que posteriormente foi objeto de uma PPP, através da aprovação da operação urbana Linha Verde. Os eixos são as vias onde são instaladas as melhores infraestruturas de transporte público e onde se incentiva o adensamento construtivo em Curitiba. Critica-se, no entanto, o fato de não terem sido propostos mecanismos que visassem reverter à lógica histórica da localização da população mais abastada nos eixos em contraposição à lógica periférica dos pobres na cidade. Não foram definidos instrumentos que pudessem proporcionar um maior equilíbrio social nos eixos, como alguns amplamente debatidos na atualidade, como as ZEIS (zonas especiais de interesse social) ou a cota de solidariedade (mecanismo que propõe que uma parte de cada empreendimento seja destinada à população de baixa renda). Ressalto ainda nesse período a grande desarticulação entre o novo PDI e os planos municipais aprovados recentemente na RMC.

Em que momento o planejamento urbano da RMC passou a ser referenciado como modelo e por quê? Quais as características para justificar este “título”?

As origens remontam à década de 1960, e guardam relação com a criação do IPPUC, a elaboração do PPU, implementação dos eixos estruturais e outros projetos. No entanto, o título foi sendo realimentado por diversas vias, como através das estratégias de marketing que foram eficientes em disseminar imagens como a da capital ecológica na década de 1990, e da capital social, posteriormente. A pesquisadora Fernanda Sánchez (professora da UFF) possui uma investigação pioneira sobre este tema.

Curitiba, sem dúvida, possui virtudes em relação à sua trajetória que contribuem para sustentar esse discurso. A proposta dos eixos estruturais baseados no transporte público em um período em que dominavam planos pautados exclusivamente pelo “rodoviarismo” é sem dúvida uma dessas virtudes. No entanto, entende-se que o suposto consenso em torno da ideia de “modelo” (reproduzido na mídia, nos estudos acadêmicos, discursos técnicos, político…) dificulta que sejam reveladas e enfrentadas as suas próprias limitações.

Quais foram as contradições verificadas?

Destacaria a não implementação ou distorção de determinados instrumentos que poderiam ajudar a mitigar as contradições socioambientais apontadas. O PEUC, por exemplo, instrumento que define a taxação progressiva dos vazios urbanos – a fim de enfrentar a valorização imobiliária fomentada pela retenção especulativa da terra – foi utilizado em Curitiba claramente para outro fim. José Ricardo Faria (professor da UFPR) evidenciou na sua tese que a utilização do PEUC no centro histórico teve clara motivação de erradicar as ocupações irregulares dessa área da cidade. A continuidade da proposta dos eixos estruturais – que representam locais privilegiados, onde convergem investimentos públicos e privados – desarticulada de instrumentos ou de uma gestão para garantir um equilíbrio social nos mesmos também é outra crítica central.

Abordo ainda a questão do transporte público. Apesar de a cidade apresentar um sistema integrado de transporte público desde a década de 1970 e ter dado início ao processo de integração metropolitana em meados da década de 1990, observa-se que boa parte das linhas metropolitanas ainda não é integrada, além disso, recentemente, diversas linhas passaram por um processo de “desintegração”, ou seja, deixaram de ser integradas, onerando os trabalhadores que moram nas regiões periféricas. A escolha de implantação do metrô ao longo dos eixos estruturais é outro aspecto que questiono, já que, de acordo com os estudos de mobilidade, a população que reside nos eixos já é a que gasta o menor tempo para se deslocar na RMC.

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